sábado, 16 de julho de 2011

O QUE É UM ARTISTA (HOJE)?


NICOLAS BOURRIAUD

FONTE: Revista Arte & Ensaio - Revista do PPG em Artes Visuais EBA - UFRJ

Ano X - número 10/2003


O artigo interroga o lugar e o estatuto do artista na atualidade, na qual o ateliê deixa de ser o lugar privilegiado da criação para se tornar o espaço onde se centralizam imagens coletadas pelo mundo. O artista, não sendo mais um criador, é uma espécie de intruso em todos os outros campos. Ele seleciona signos, explora seus campos de produção, manipula-os, constrói trajetórias entre eles.


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Um avião furtivo

O artista é um avião furtivo da cultura: imperceptível ao radar do espetáculo, porém extremamente eficaz por sempre apontar para lugares afiados, para as situações mais críticas.

Hoje, com a televisão e as marcas, toda a sociedade produz imagens. O ateliê perdeu sua função inicial: ser “O” lugar de fabricação de imagens. Como resultado, o artista se desloca, vai para onde as imagens são feitas, insere-se na cadeia econômica, tenta interceptá-las. O ateliê, portanto, não é mais o lugar privilegiado da criação, ele é apenas o lugar onde se centralizam as imagens coletadas por toda parte. Além disso, um ateliê é onde a matéria-prima é manipulada.

Há um século, encontraríamos ali essencialmente potes de tinta ou argilas; hoje ele pode conter imagens de revista, televisão, situações sociais, carros, qualquer coisa. As matérias-primas da arte contemporânea são tão diversificadas, que o tamanho do ateliê varia segundo as práticas e o projeto artístico. De um lado, o ateliê de Jeff Koons: uma fábrica de 50 pessoas, algo como Walt Disney Production; de outro, o pequeno ateliê onde Claude Closky simplesmente recorta revistas de moda. Três quartos dos artistas trabalham em casa, em um pequeno espaço que se transformou em ateliê. É uma coisa tola, mas que tem relação com a crise imobiliária: não é mais possível ter ateliês imensos, e seus tamanhos estreitam com a flutuação dos aluguéis.


2

O novo intruso

O artista contemporâneo habita todas as formas de arte. O problema não é produzir novas formas, mas inventar dispositivos de habitat. Habitar formas de arte já historiadas, reativando-as, mas também habitar outros campos culturais. É exatamente o que se passa na arte dos anos 2000: o artista é permanentemente um intruso em outros campos. Marie-Ange Guillerminot produz um vestido que poderia ser comercializado; Carsten Höller inventa uma droga euforizante; Fabrice Hybert monta uma empresa. Não é mais criar, mas surfar sobre estruturas existentes.

Interdisciplinaridade” é certamente, um termo freqüente na arte contemporânea: eu pessoalmente não creio que ainda exista, nesse nível de criação, algo que possamos chamar de disciplinas. Existem apenas campos de signos, de produção, que os artistas exploram de ponta a ponta. Como consequência, o artista hoje, de Mauricio Cattelan e Alain Bublex, de Gabriel Orozco a Jorge Prado, é uma espécie de “semionauta”: um inventor de trajetórias entre os signos. Ao mesmo tempo, esse squat é também um refúgio: a arte tornou-se hoje um tipo de abrigo geral para todos os projetos que não se ajustam a uma lógica de produtividade ou de eficácia imediata para a indústria e para a sociedade de consumo.


3

O artista como parasita

Eu não acredito nesta idéia de artista contemporâneo como um parasita: o parasita não utiliza o organismo no qual ele se introduz; apenas dele se nutre. Esse não é o caso dos artistas contemporâneos: eles estão mais na ordem do manuseio, da manipulação dos signos, do que em uma problemática do parasitismo. Quem diz parasitismo diz necessidade e desejo de causar dano, e, nesse caso, não existe dano: é apenas um modo particular de se servir das formas para produzir alguma outra coisa. Isto não é de todo antinômico em relação à idéia de uma ação política, ao contrário: a ação política mais eficaz para o artista é, segundo o meu ponto de vista, mostrar o que pode ser feito com o que nos é dado. Não significa a esperança em uma revolução, mas a manipulação das formas e das estruturas que nos são apresentadas como eternas ou “naturais”. “Eis o que nós temos. O que podemos fazer?” Com esse espírito, podemos efetivamente mudar as coisas de uma maneira muito mais radical.


4

O artista como diretor

O artista de hoje funciona cada vez mais como um diretor. Ele faz o casting, como Rebecca Bournigault ou Pierre Huyghe para os seus vídeos, mas também castings de objetos, como nas instalações de Sylvie Fleury e Pipilotti Rist, ou nos environnements de Domingues Gonzales-Foerster: para aquele quarto, escolhe-se aquele despertador e não outro qualquer. O artista trabalha exatamente como um diretor que seleciona, de fato, o que vai se passar na frente da câmera. E a exposição é isto: um filme sem câmera, uma película sobre a qual registramos uma ação, uma forma. Em troca, o espectador pode de algum modo organizar sua própria seqüência de exposição. Os artistas contemporâneos são, portanto, diretores, essa é sua condição natural, quase espontânea. Não têm, aliás, apenas o desejo de fazer cinema; eles estão com bastante freqüencia no próprio cinema com os filmes de Philippe Parreno, Doug Aitken, Charles de Meaux, Douglas Gordon e Matthew Barney...Mas, ao mesmo tempo, o que choca também as pessoas de cinema é que, quando o artista faz um filme, isto é, para ele, apenas uma atividade entre outras, um objeto que faz parte de um conjunto muito mais vasto de objetos. Aqui se está ainda no registro da dessacralização da arte: “Eu faço filmes, mas talvez na próxima semana grave um disco”. E isso, sem dúvida, incomoda.


Bourriaud, Nicolas. Qu’est qu’un artiste (aujourd’hui). In: Beaus Arts Magazine, 2002. O autor é escritor e crítico de arte. Publicou, além de um romance, diversos ensaios sobre arte, entre os quais: Formes de vie: L’Art moderne et l’invention do soi; Relational Aesthetics. Fundou as revistas Documents sur l’art e Perpendiculaire. É atualmente co-diretor do Palais de Tokyo.

Tradução: Felipe Barbosa

Revisão técnica: Marisa Florido Cesar

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